André Ventura e a Lei de Lavoisier
A Nova
Direita Anti-Sistema – O Caso do CHEGA foi uma das minhas leituras mais recentes. Trata-se de um
estudo de Riccardo Marchi que, no âmbito do processo de reconfiguração da
direita, em Portugal, se ocupa do processo de criação do CHEGA e do perfil
ideológico do seu líder – André Ventura. Segundo o autor, o objetivo do projeto
CHEGA é a criação de um partido “anti-sistema, de direita radical, liberal na
economia e conservador nos costumes”. Nem racista nem xenófobo, muito embora as
manifestações em contrário que amiúde ocorrem no seu seio. Para a sua base
social de apoio conta com os setores da sociedade que nunca se reviram nas
propostas da direita parlamentar – CDS e PSD –, com a abstenção e com setores
do eleitorado desiludido que vão do PS a franjas de descontentamento do PCP.
Acontece que
tudo isto é dito, conforme faz notar Daniel Oliveira num esclarecedor artigo
publicado no Expresso de 1 de agosto passado, em registo de “o Chega a falar de
si próprio”. Tendo a “isenção” e “rigor” científicos anunciados dado antes lugar
a um trabalho de perfil marcadamente apologético, e a uma tentativa de lavagem do
que é a imagem do CHEGA percecionada pelo grande público. Mas também não é
menos verdade que, muitas das críticas e manifestações de repúdio, de diversos
setores de opinião, que entretanto se fizeram ouvir nos media, escondem alguma
má consciência por responsabilidades próprias no crescendo da extrema direita
em Portugal. Livro e críticas suscitam-nos as seguintes considerações:
1 – André
Ventura acredita – a nosso ver com razão – que a Lei de Lavoisier tem também
aplicabilidade no domínio das dinâmicas sociais: “Na natureza nada se perde,
nada se cria, tudo se transforma”. Afinal, quem não se recorda dessa
gigantesca metamorfose que ocorreu por alturas de Abril de 74, quando milhares
que pouco tempo antes cantavam “Angola é nossa!”, ou acorriam às ladainhas de
vassalagem ao regime, passaram, pouco tempo decorrido, a gritar com a mesma veemência,
“O Povo unido jamais será vencido!” ? E o “Portugal profundo”, onde não poucas
vezes o regedor de freguesia salazarista se transformou, de um dia para o
outro, em presidente de junta, indefetível democrata de sempre, com cravo na
lapela e tudo? E o fascista Mussolini, não começou também por ser socialista? –
Aliás, para dar testemunho da sua crença, André Ventura, ele próprio oriundo
das hostes do PSD, foi buscar, para ocupar um dos lugares de Secretário da Mesa
da Convenção, Nelson Dias da Silva, homem com pergaminhos de passado socialista.
– “Todo o mundo é composto de mudança / Tomando sempre novas qualidades”
(Luís de Camões). Porque não acreditar, pois, que amplos setores do eleitorado,
alinhados hoje da direita liberal à esquerda, não possam vir amanhã a eleger um
governo do Chega e amigos mais chegados? – Não se assustem. Ainda não será
ainda a nova direita: será apenas o fascismo, estúpidos!
2 – O
anátema lançado sobre a ideia de “anti-sistema”, que à boleia do Chega tem
procurado ganhar legitimidade, pretende blindar a ordem vigente, visando
perpetuá-la, tal como é próprio de qualquer sistema, ao menos por inércia, tender
a perpetuar-se. Trata-se de uma ideia de cariz profundamente conservador, tanto
mais quando ganha foros de “lei”: there is no alternative (M. Thatcher)
ou o “fim da história” (F. Fukuyama). Acontece que a democracia liberal,
onde se inscreve o atual regime, terá, como qualquer outro sistema, duração
limitada. É o melhor, apenas enquanto os novos problemas com que se debatem as
sociedades – aumento exponencial das desigualdades, agravamento da crise
climática, “esta economia que mata”, como diz do capitalismo o Papa Francisco,
a ameaça do desemprego massivo com a substituição do homem por novas
tecnologias e pela inteligência artificial, e a exclusão da vida cívica da
generalidade dos cidadãos, confinados ao ritual do voto, permitido como droga,
e do pagamento de impostos – não gerarem outro sistema que lhes traga perspetivas
de solução.
3 – Deveria
ser evidente, para todos os zelosos “democratas”, que o verdadeiro problema não
é Ventura ou o Chega, mas antes a base social que lhes deu origem, lhes dá apoio
e lhes alimenta as dinâmicas, à sombra dos problemas sociais que a “democracia”
se tem mostrado incapaz de resolver. E isso é, em primeira mão,
responsabilidade da “democracia” ela própria, – anémica e anã como nunca deixou
de ser a que temos. Dizia José Manuel Pureza, em artigo publicado no Diário
as Beiras de 04-07-2020: “Conhecemos o contributo da direita para o
crescimento da extrema direita na Europa: fazer sua, sem o assumir, a agenda
populista (…)”. Falta apenas lembrar a outra metade da verdade: e o
contributo da esquerda “poucochinha”, embalada pelo doce canto das sereias
parlamentares e resignada ao respeitinho pelas instituições, qual tem sido?
Qual tem sido a responsabilidade da esquerda – pelo menos parte dela, – não
poucas vezes transformada em refúgio para gente a tresandar a odores fascistas,
à espera do momento propício para “sair do armário”, qual cavalo de
Tróia?
4 – Apesar
dos pesares, apenas por má fé ou cegueira não se reconhecerá que a “democracia
real”, ainda que cada vez mais tolhida pelas suas próprias limitações, e circunscrita
a aspetos meramente formais, ainda assim desempenhou um papel importante no
desenvolvimento do país; que apresenta hoje uma face substancialmente diferente
do que foi o legado do anterior regime. Quanto ao mais, “El día que nos
roben el sofá, ese día nos levantaremos” (blog Entre as Brumas da
Memória).
nelson anjos
Comentários
Com o pouco que me é dado a entender concordo.
Valha-nos a herança do "poucochinhismo" de esquerda, direita, antigos e novos regimes que nos dá a esperança de, ainda que nada de francamente bom venha a florescer, havemos de ser poucochinhos e pequeninos nos avanços generalizados das extremas direitas e não hão de vingar Venturas e Chegas por terras de Viriato.
No dia em que se dê a volta e voltem a mudar tempos e vontades rumo a outra esquerda, outra democracia ou outra forma de organizar liberdades e economias, consigamos ser maiores.
Que me esclareçam os mais sabidos nestes assuntos, mas eu tendo a fazer uma divisão clara entre democracia e cidadania, embora as duas andem de mão dada todo o tempo.
Do mesmo modo penso que entre nós há um défice de cidadania derivado de uma crónica falta de instrução e não um défice de democracia. Tanto é que elegemos um partido de extrema-direita racista e xenófobo sem pestanejarmos. Digo elegemos porque tenho absoluta convicção de que todos nós, sem excepção, somos responsáveis por essa eleição.
Em certos momentos até parece que “há mais” democracia do que seria desejável, mas essa é a verdadeira essência da democracia, em que a vontade de cada um condiciona a vontade de todos. Se assim não fosse, aí sim, não haveria democracia. O que quero dizer é que, muito embora não seja do nosso agrado e seja até perigoso para a própria democracia a eleição de um partido de extrema-direita para a assembleia da república, esse facto não é o parto pérfido de uma democracia anã, é muito pelo contrário o resultado de uma democracia a funcionar em pleno. Ou seja, a coisa não funciona como uma torneira que se pode abrir aos poucos para deixar passar só quem se quer consoante a vontade de alguns, isso já não seria democracia, seria uma ditadura e o dono da torneira chamar-se-ia ditador, fosse ele de direita ou de esquerda. Não há mais ou menos democracia; ou há democracia ou não há democracia.
Já a cidadania não é assim. A cidadania é exercida, ou não, por cada um, no dia-a-dia, menos, ou mais, ou nada, consoante o caso e está nas suas mãos a continuidade ou não da democracia. A avaliar pelo “politómetro” geral, dentro e fora do país, a coisa não está para brincadeiras e se não houver forças contrárias de cidadãos verdadeiramente empenhados, num futuro não muito longínquo a questão poderá não ser se haverá muita ou pouca democracia, mas se haverá democracia.
Qual é o meu contributo? Como me posiciono eu? Sou do nada. O meu maior exercício de cidadania é cumprimentar as pessoas que encontro no talho ou na padaria, as pouquíssimas vezes que lá vou. Até mesmo votar, talvez o mais simbólico acto de cidadania, é cada vez mais penoso para mim e penso inúmeras vezes se vale a pena. Vem-me à cabeça vezes sem conta uma frase que os anarquistas escreviam em todas as paredes, logo a seguir ao 25 de Abril, no sentido de convencerem as pessoas a não votar e que dizia: “VOTAR É MUDAR DE DONO”. Quando observo cada dia que passa esta politiqueirice que nos rodeia, cada vez mais aquela pequena frase faz mais sentido.
Mas o pior não sou eu. O pior é se houver muitos como eu, não do “Chega”, mas do “Estou farto”, ou do “Estou-me marimbando”, esta cena pode muito bem descambar.
Quinteiro