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“No primeiro volume de Em Busca do Tempo Perdido, o colosso literário de Marcel Proust, o narrador, enfastiado por um dia tristonho, é remetido para a infância quando a mãe lhe serve uma madalena com chá. O episódio tornou-se num dos excertos mais célebres de sempre, por razões que ultrapassam a literatura. A esse efeito das sensações na recuperação da memória, a psicologia moderna haveria de chamar “efeito de Proust” ou, em termos coloquiais, “madalena de Proust”.

Ontem, pelas onze e meia da noite, tive uma madalena de Proust. Estava a comer uma taça de Nestum com Mel e, de repente, tinha 12 anos outra vez e o apetite selvagem de quem passava os dias a jogar ténis. Fiquei feliz e preenchido e absolutamente certo de que dormiria nove horas (ah-ah-ah) e de que no outro dia pegava na mochila com a energia de um pré-adolescente”.

                                               O HOMEM QUE COMIA TUDO   de Ricardo Dias Felner

 

 Aqui chegados, e depois desta pequena apresentação, fico na dúvida se devo falar do livro, do autor, das crónicas que mais me agradaram, da influência da globalização no mundo da gastronomia, do que aprendi, do que não aprendi ou das muitas segundas mensagens que estão implícitas para quem as queira ler.

Para já, posso dizer que é mais do que uma coletânea de artigos sobre “aventuras culinária, receitas e restaurantes de Portugal e do mundo” publicados nas nossa melhores revistas e jornais. Também não deve ser confundido com um livro de receitas embora na Bertrand esteja a ladear com os de culinária.

Quando se fala em comer uma cachupa na Cova da Moura, não nos ficamos pelos ingredientes e forma de confeção. Abre-se o caminho para sentirmos o bairro pacato durante a tarde em contraste com a droga e violência que despontará pelo anoitecer.

Para mim, que sou mais do tipo Teleculinárias ou para quem a Cozinha Tradicional Portuguesa é uma espécie de bíblia, passe o meu ateísmo crônico, o que mais me surpreende é que haja uma plataforma acima do meu mundo onde os Chefs (com ou sem estrelas Michelin) se digladiam e sofrem por novas invenções só para satisfazerem palatos mais exigentes (e será mesmo só para isso?)

Depois de aprendermos umas coisas sobre pão, sardinhas, bitoques e até frango de churrasco, caímos numa reflexão sobre arte na gastronomia. Sim?! Não?! Talvez?! Para mim não ficam grandes dúvidas: É Arte sim, senhor!   Está lá tudo: Criatividade, Estética, Produz Emoções…!

 

(ET: Conheço o Ricardo Dias Felner há mais de 20 anos, do tempo em que ele era um jovem jornalista recém-licenciado. Admiro-o como pessoa e profissional, mas espero ter sido isenta nesta breve apreciação da sua última obra.)

Marília Pinho


Comentários

Em matéria de gastronomia – e em muitas outras – sou o que se chama um “calhau com dois olhos”. Daí que, não fora o texto de Ricardo Felner iniciar com uma invocação do célebre “Em Busca do Tempo Perdido”, de Proust, (li há largos anos três dos sete volumes; os restantes aguardam pacientemente a sua vez na estante …) e não me teria atrevido a dizer fosse o que fosse. Não é que não distinga jaquinzinhos fritos de lagosta suada. Mas não troco os primeiros, com arroz de tomate e uma boa companhia, pela lagosta, se além disso for em companhia do meu não agrado. E não nego que em qualquer destes pratos, ou noutros, se possam encontrar os tais atributos que a Marília refere como associados a qualquer obra de arte. O caso é que a minha sensibilidade é-lhes refratária.
Ainda assim há um elemento de identidade entre mim e o livro do Ricardo Felner: o título. Também sou um homem que come tudo. Sem sacrifício. Ainda está por inventar o prato relativamente ao qual diga “não sou capaz de comer isto!”. Resumindo: em matéria de gastronomia sou aquilo a que se chama uma “boquinha de cabra”. Claro que há coisas de que gosto mais do que de outras. E há pratos a que associo histórias e passados. Sopa de beldroegas lembra-me a minha avó, camponesa, que a fazia no verão no tempo das férias, em Alcobaça. Bagre com fúmbua comia-se numa tasca, na ilha de Luanda, trazida do norte por gente fugida da guerra. E na Guiné comi macaco. Não recomendo. É uma carne extremamente dura, com uma textura mais ou menos semelhante a borracha de pneu. Também não apreciei particularmente o peixe cru que se come na Finlândia, já no círculo polar ártico – Suómi (?) – a que os finlandeses dão um nome intragável para o tornar mais tragável. Mas um dos pratos mais enigmáticos que experimentei foi no Uíge – norte de Angola – e em Cabinda: “carne de caça”. Ora, quando se entra numa tasca e o dono nos diz que tem “carne de caça”, não se deve fazer mais perguntas: é pegar ou largar. Sentas-te e enquanto aguardas e depois vais saboreando o pitéu procuras recrear-te imaginando o que será a “caça”: cão? Gato? Espécie exótica em vias de extinção? Cadáver de inimigo morto no confronto do dia anterior? – por mais pródiga que seja a tua imaginação fica com a certeza que a realidade será sempre muito mais espantosa. E, aproveitando a deriva para o mundo das artes, saboreia cada nuance como se tentasses decifrar o sentido desta ou daquela tonalidade num quadro das escolas abstracionistas. Porque “carne de caça” é isso mesmo: uma abstração 😊.
E como uma refeição se remata com um café, não posso deixar de lembrar o “café” de Moçambique. Depois de um ano a bebê-lo, quando de regresso à pátria desembarquei em Lisboa e me dirigi a um dos cafés do aeroporto, para a “bica” da chegada, depois do primeiro golo fiz uma careta e perguntei: “isto é café!?”
(Já agora que ninguém nos ouve, e para lavar a boca destes paladares horríveis: não há nada que chegue a uma boa feijoada à transmontana!)
nelson anjos
marilia Pinho disse…
Não me quis alongar demasiado no que escrevi antes e por isso não mencionei que O Homem Que Comia Tudo é mesmo isso: um provador de coisas não habituais.
Um dos capítulos mais curiosos, precisamente, é o que narra a sua refeição de insectos: Baratas, larvas, tarântulas, etc. Começa pela odisseia da procura pela cidade de Lisboa dos ditos ingredientes que, como podemos imaginar, não estão disponíveis ali ao virar da esquina. A sua preparação e o jantar, em que alguns amigos, activistas do meio ambiente, são convidados, faz-nos pensar que talvez seja tempo de abrirmos a nossa mente a coisas novas. E se tivermos em conta que a FAO das Nações Unidas nos convida a comer insectos por serem nutritivos, de menor impacto ecológico e uma forma de combater a fome, acho que esta experiência é um bom princípio.
Aqui fica o repto!
Rita Anjos disse…
Sou boa de garfo, mas vivo com pessoas que comem insetos e já experimentaram fezes de gato... Há cada um... Também alinho melhor com os mestres que "a sabem toda", tele-culinárias, e até o Pantagruel que salta da estante a cada fim de semana para dar dicas e conselhos.
Obrigada pela sugestão Marília, vou procurar!
... e depois desta diversificada mostra gastronómica achei de bom senso deixar um conselho: não se esqueçam de desinfetar as sanitas das vossas casas de banho com criolina e de as deixar em regime de quarentena pelo período mínimo de um mês.

nelson anjos
Quinteiro disse…
É muito bom que também aqui entre nós, à semelhança do que se passa na parte mais rica do mundo, haja espaço, mais, bem-estar e posses para que a gastronomia e tudo o que gira à sua volta seja considerada motivo de discussão e crítica em publicações escritas, televisivas, de todo o género, com a dimensão e a relevância que está a ter, completamente mediatizada, como se de uma arte se tratasse. Há mesmo quem a considere uma arte. E porque não? Tem todos os “ingredientes” para isso.

Mas dizia, é muito bom para nós porque infelizmente não é todo o mundo que pode ter esse privilégio. Há povos que mal têm para comer e há ainda outros que não têm mesmo. A fome é ainda hoje (séc. XXI) uma das maiores pragas da humanidade, senão a maior. E uma família que nada tem para comer não pode optar por papas cerelac na vez de madalenas, sejam elas de Proust ou de quem for, ou por jaquinzinhos em detrimento de lagosta suada. Muito menos verá ponta de sentido numa qualquer discussão em torno dos respectivos sabores, condimentos e modos de preparação.

Talvez um dia, os nossos netos, bisnetos, … , (x)netos, muito mais evoluídos do que nós (nós ainda transportamos muita massa macacóide, a avaliar por grande parte dos nossos comportamentos), ir-nos-ão culpabilizar por não fazermos nada, hoje, para inverter esta situação. À semelhança, diga-se, de tantas outras coisas que estão mal neste país e no mundo. Por agora vamo-nos contentando em termos nós próprios a barriguinha cheia e os outros que se amanhem.

Não foi sempre assim esta boa vida de “fartura”. Não há muito tempo que aqui neste cantinho à beira mar plantado se passava fome, muita fome. Não havia pessoas a morrer porque havia sobretudo uma grande solidariedade social e quem tinha um pouco dava para quem não tinha nada. Eu sou testemunha disso.

Apesar do dito, quero acabar em tom positivo. Quero acabar como comecei: é muito bom que a gastronomia faça parte das nossas vidas, é um sinal de prosperidade e desejo que num dia muito próximo, também os que ainda hoje passam fome possam apreciar a sua própria gastronomia.

Quinteiro

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