A Espuma da Democracia
Numa das suas últimas habituais crónicas
de sábado, no jornal Público (Público, 5 de Novembro de 2022), José
Pacheco Pereira (JPP) ocupa-se, em linha com o que se tem vindo a desenhar como
sensibilidade dominante, com os riscos com que de forma cada vez mais evidente
as democracia se confrontam nos tempos que correm. A palavra de JPP tem, juntamente
com poucas outras, em regra, o condão de me surpreender, sempre pela lucidez, a
que umas vezes se acrescenta a surpresa e outras o algo de novo que me ensina ou
leva a descobrir. Não foi o caso e estranho. Admito desde logo, sem falsa
modéstia ou ironia, limitações de leitor.
Não
há discordância relativamente ao que é dito. Apenas a sensação de já ter lido
aquilo algures, escrito pelo autor, por outros, em jornais, revistas ou nos
livros que ultimamente têm vindo a ser escritos sobre o tema. Como se o autor
estivesse já a bater no teto de tudo o que havia para dizer sobre o assunto. Não
duvido que é importante – e na matéria, por maioria de razões – repetir à
exaustão ideias fundamentais. Mesmo com o risco de perdas de significado
produzidas pela banalização. Mas existem coisas novas, outras que o não são já
tanto, que é necessário arriscar dizer. E JPP sabe-o.
Aquilo que foi aventura, insegurança –
como tudo o que é caminho novo – há cerca de dois mil e quinhentos anos, não
tem hoje contrapartida nos seus supostos herdeiros, remetidos à preguiça e ao
conformismo. Refiro-me à democracia que nasce – como risco – em Atenas, quando
Sólon proclama a libertação da terra e de pessoas. Diz, dirigindo-se à história:
“Ela me dará testemunho, perante o tribunal do tempo, a
grande mãe dos Olímpios, a Terra negra, a quem eu arranquei os marcos,
enterrados em todos os lugares. E trouxe a Atenas, à sua pátria, fundada pelos
deuses, muitas pessoas vendidas como escravos, mais ou menos justamente, e
outras que se tinham exilado sob o peso de uma dívida e que não falavam já a
língua ática, de tal modo haviam errado pelo mundo, e outras ainda que, no meio
de nós, sofriam uma servidão indigna e tremiam diante do humor dos seus
senhores. A todos eu dei a liberdade”. (André Bonnard, A Civilização Grega, Lisboa,
2007)
E é do tempo de Sólon, também, o direito
de todos os cidadãos ao voto, em termos de igualdade, na Assembleia do povo.
Estamos no século VI antes de Cristo: escravos e mulheres não têm ainda
direitos de cidadania. Com o fim da escravatura, há cerca de duzentos anos, e o
direito das mulheres ao voto, há cerca de cem, havia condições para que aquilo
a que hoje vivemos temerosamente agarrados, como última tábua de salvação, não se
tivesse reduzido ao fóssil exumado pela Revolução Francesa há duzentos e
cinquenta anos. Refiro-me ainda à democracia.
É por isso imperioso voltar a derrubar
todos os marcos e pôr termo à escravização da Terra. Antes que morra exangue. E
aos marcos de desenvolvimento humano – Revolução Francesa, Declaração dos
Direitos do Homem, Declaração da Independência Americana, Carta das Nações
Unidas – é necessário acrescentar novíssimos marcos: porque “esta economia
mata” (Francisco) e “os velhos consensos e submissões que nos
trouxeram até aqui têm de ser atirados ao caixote do lixo (…)” (Manuel
Carvalho da Silva). Sim, é preciso colocar na ordem do dia a discussão de um
novo tempo social e económico. Porque aquilo que vamos designando por
“democracia” se encontra cada vez mais reduzido a um “esquema” burocrático de
formalismos, legitimado por jargões de direito (que direito?) que visa manter e
tornar os ricos mais ricos e convencer os pobres das “justas razões” porque o
são e assim deverão continuar. Sim, é necessário que na cidade o “cidadão não
praticante” que existe, ascenda a cidadão de facto. Inteiro e igual entre
iguais. Não só em direitos mas em condição. Sim, é necessário que deixem de
fazer sentido expressões como “sociedade civil”, ou “cidadão comum”, cunhadas
para referir a “não-cidade” e o “cidadão civicamente desempregado”. Ou panaceias
de última hora como “descentralização” ou “regionalização” que, na ordem atual,
não se destinam a outra coisa que não seja calar pequenos caciques locais,
facultando-lhes maior acesso a negociatas/corrupção, arte em que são tão ou
mais competentes que os que se encontram junto do poder central. E a cuja
sombra cresce e se abriga uma nuvem de pequenos e mais baratos Ventura(s). Sim,
é necessário desmascarar todos os videirinhos e compradores de votos, que em
vésperas de eleições vêm anunciar a liberdade de dizer “sim” apenas ao que já
é. Para quem a lei ainda é divina e… o futuro pertence apenas a Deus! –
incluindo Abril, que deve ser festejado mas apenas como passado.
O mais importante da crónica de JPP é a
carga de avisos com que termina: “E isto cresce.” Não encontrei melhor
comparação para o negro sentimento de luto que vai cobrindo as democracias, no
seu estado atual, que a escuridão do profundo desgosto que levou o rato de Chloé
ao suicídio, depois da morte da sua dona, procurando o favor das mandíbulas de
um gato misericordioso. (Boris Vian, A Espuma dos Dias, Relógio d’Água,
Julho de 2001)
nelson anjos
Comentários