Cartilha do Povo
(Para a Gente do Campo)
José
Povinho
Mas como é que o governo encontra tantos
deputados, sem honra nem vergonha, para lhe aprovarem os seus escândalos?
João
Portugal
Como? Comprando-os.
(José Falcão, Cartilha do Povo, Coimbra, 1884)
Como
se pode concluir, o recente caso noticiado nos órgãos de informação, envolvendo
autarcas de Montalegre, será apenas mais um de uma longa fila de “presumíveis
inocentes” que vem já do século XIX. Onde o último tem sempre a “virtude” de
fazer esquecer todos os anteriores. Deputados e autarcas vendem-se já –
“presumivelmente inocentes”, claro – desde esse tempo.
O truculento fragmento que atrás se
reproduz faz parte da Cartilha do Povo, um texto inicialmente anónimo – os
poderes instituídos nunca perdoam a quem os questiona – e escrito sob a forma
de diálogo entre José Povinho e João Portugal. Estávamos no
último quarto do século XIX e a monarquia constitucional agonizava, soprada
pelos ventos da história que, com atraso crónico, iam apesar de tudo chegando de
França. Por cá, os republicanos de todas as tendências batiam-se pela sua
causa. É nesse espírito de preocupação didática que se enquadra a Cartilha
do Povo, escrita em termos muito simples, por vezes a roçar a ingenuidade e
a utopia. Ainda assim, e considerando que muitos dos objetivos centrais do
ideário republicano se encontram por cumprir, a leitura da velha Cartilha
continua ainda a fazer sentido.
O autor, o
professor universitário e ativista republicano José Falcão, natural de Miranda
do Corvo (Pereira), aproveitou a figura, já criada por Bordalo Pinheiro, no jornal
humorístico Lanterna Mágica, em 1875, – Zé Povinho – para
representar a gente do campo, como se diz na capa das primeiras edições,
e a quem o livro é destinado. João Portugal representa as gentes do meio
urbano, supostamente mais esclarecidas, o que nem sempre era – e continua a não
ser – verdade.
Num ato de dupla
censura, Miranda manteve calado José Falcão – e manteve-se calada, – durante
mais de um século. Nunca é demais lembrar a tese de Luís Trindade (O
Espectro dos Populismos – Ensaios Políticos e Historiográficos, in AAVV,
Lisboa, Tinta da China, 2018): o salazarismo já existia antes de Salazar
ter nascido e o seu patrono continua ainda por cá – em versão livre.
Foi no âmbito das
comemorações do centenário da República que, por iniciativa de um pequeno grupo
de mirandenses, participado também por alunos da escola local, lhe foi
devolvida a palavra e a face, sendo ao tempo Presidente do Município Fátima
Ramos. Por iniciativa da Câmara teve lugar uma edição fac-similada da Cartilha
do Povo e foi colocado também um pequeno busto do autor na Praça que leva o
seu nome. Honra à sua memória.
nelson anjos
Comentários
Faz lembrar a «Tourada» a representar Portugal em 1973!