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A PESTE

No ano da graça de 1947, o escritor franco-argelino Albert Camus publicou ‘A peste’. Uma versão romanceada da filosofia existencialista que trata da solidariedade que a todos devemos, do livre arbítrio e da responsabilidade e consequências das nossas escolhas. Os tristes e preocupantes factos dos últimos meses reposicionaram este livro no centro das atenções de quem a respostas frívolas e não pensadas prefere uma reflexão mais séria sobre as contingências da vida.

Numa cidade do norte da Argélia, Orão de seu nome, em 1940, um médico, Bernard Rieux, encontra um rato morto ao deixar o seu consultório. Noticiou o facto ao responsável pela limpeza do prédio, que se mostrou incrédulo. No dia seguinte, outro rato foi encontrado, morto, e no mesmo lugar. A esposa do médico tinha tuberculose e foi levada para um sanatório. O médico recebeu um jornalista francês que pretendia entrevistá-lo sobre as condições de vida da comunidade árabe da cidade.

A quantidade de ratos parecia aumentar exponencialmente. Os ratos começaram a ser queimados. Num único dia, 8 mil ratos foram colectados e encaminhados para fornos crematórios. A cidade entrou em pânico. As pessoas sofriam com muita febre, e as mortes multiplicavam-se. Foi decretado um “estado de praga”. Os muros da cidade foram fechados. Iniciou-se a quarentena. Preocupava a expansão da doença.

Muitas famílias foram separadas. Os mais doentes foram conduzidos para outros pontos da cidade. O pároco local fez um inflamado sermão dizendo tratar-se de um castigo divino e que a cidade o merecia. Estavam sofrendo, mas, dizia o padre, mereciam. Os prisioneiros eram usados para transportar e enterrar os cadáveres. Os corpos amontoavam-se nas ruas. As crianças morriam. O sacerdote ainda achava que tudo decorria dos planos de Deus. Afirmava que os cristãos deveriam aceitar o seu destino. O prior morreu. (Camus era um anticlerical, mas era realista.)

Num determinado momento, as mortes começaram a diminuir. Fechou-se um ciclo. As portas da cidade abriram-se. As famílias, então separadas, reuniram-se. A praga, que durou 10 meses, acabou. O enredo, no entanto, é longo, e conta com muitas variações e subtemas. Vale a pena uma leitura atenta.

Esse livro estonteante é uma clara e directa crítica ao nazismo e à ocupação militar alemã, que humilhou e subjugou os franceses. Camus integrou a Resistência, grupo que se insurgia contra os alemães que ocupavam Paris. Escrito ao longo da guerra, com a expectativa de que a aflição passasse um dia, ‘A peste’ é uma lembrança de que o pior sofrimento um dia acaba, que as noites são escuras, mas não são eternas. ‘A peste’ é também, metaforicamente, um discurso contra qualquer forma de opressão humana, da qual o nazismo aparece como a mais opressiva de todas. ‘A peste’ é ainda uma atitude de incredulidade para com o absurdo, contra o qual conduz uma revolta necessária e libertadora.

Camus concluiu este desesperado livro lembrando que o bacilo da peste não morre e não desaparece. Avisa-nos que o bacilo da peste fica “dezenas de anos a dormir nos móveis e nas roupas”. Ainda, adverte que a peste “espera com paciência nos quartos, nos porões, nas malas, nos papéis, nos lenços”. E quando volta, “para nossa desgraça, manda os ratos morrerem numa cidade feliz”. Trocando-se ratos e bacilos por outros vírus e pragas tem-se o quadro aflitivo que actualmente a humanidade vive.

 Pedro Mendes

Comentários

A Peste é um clássico e uma das referências da minha biblioteca de juventude. Li-o seguramente há mais de meio século, talvez em edição de “poche”, comprada nalgum alfarrabista das margens do Sena, em tempo de cinzas do Maio/68 – talvez 69 ou 70. Nem o resumo, muito bem escrito, do Pedro, me trazem à memória o mais ligeiro resquício de qualquer episódio. Suponho também que, ao tempo, as relações que terei estabelecido entre a obra e outras questões teriam remetido mais para aspetos abstratos, como fossem as escolas filosóficas que faziam a moda do pensamento da altura, do que para o concreto das mundividências – como o faz o Pedro.
Do que recordo ainda do autor – que fui confirmar à wiquipédia – tratava-se de um homem de pensamento livre de amarras, que rejeitou o marxismo e também o existencialismo. Quanto ao mais, nem Hitler nem Stalin. O que o levou a uma situação de tensão e confronto continuado, com certos setores da intelectualidade da “gauche” francesa, que cultivava ainda uma confortável passividade acrítica relativamente ao marxismo. Ficaram célebres as “pegas” que teve com o Sartre.
nelson
Este Livro, ' A Peste' de Albert Camus, também faz parte da minha biblioteca... Penso que o li na minha juventude, mas não tenho a certeza. O meu 'tempo' não deu para o reler, ou ler; de qualquer forma, como descreve o Pedro, o que nos envolve nos dias de hoje é uma situação de pandemia que nos deixa pensativos e impotentes face aos factos. Termos os cuidados que nos pedem, não é menos importante, que naquela época, queimarem os ratos e os mortos, por causa da contaminação. As doenças, vírus e outras pragas, aparecem sem aviso, há séculos. Cada época foi vivida consoante as medidas existentes. Nos nossos dias, em que a ciência prima pela sua eficácia, vimos afinal que continuamos vulneráveis.

Cecília Pedro
Pedro Mendes disse…
A Peste dos Micróbios
A Peste dos Vírus
A Peste da Fome
A Peste do Egoísmo
A Peste dos Bajuladores
A Peste das ‘Cunhas’
A Peste da Corrupção
A Peste do Populismo
A Peste do Fanatismo

Com um Mundo demasiado empestado
Torna-se cada vez mais difícil
Avançar sem medo na luta
“Pelo pão, pelo trabalho, pela paz!”
Quinteiro disse…
Já somos três. Estou exactamente como a Cecília e o Nelson: tenho a ideia de que li esse livro há muitos anos, pelos meus 16 a 20 anos, e não me lembro rigorosamente de nada. A diferença é que não era nas margens do Sena que ia buscar os meus livros, era na biblioteca itinerante da Gulbenkian, que passava mensalmente lá na aldeia. Que saudades…

Nessa época estava na moda ler-se escritores/filósofos existencialistas. O existencialismo, já com uns aninhos, estava de certo modo em consonância com os emergentes movimentos hippies da altura, o “make love not war” e a novíssima onda do rock´n´roll, por si só palco de todas as liberdades e de todas as expressões. Lia-se sobretudo Sartre, o pai, mas também escritores conotados com esse pensamento, Camus entre eles.

Tenho que reler.

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