ESTEIROS
“Para os filhos dos homens que nunca
foram meninos, escrevi este livro”
Publicada
em 1941, a obra narra a vida de jovens trabalhadores nas margens dos esteiros
do Rio Tejo, em Alhandra, que fabricam peças de barro nos telhais. A história
centra-se no percurso de Gaitinhas, Maquineta, Malesso, Cocas, Sagui e Gineto,
abrindo-nos as portas da sua miséria e do seu sofrimento, arrastando-nos na
busca do sonho – única saída para a pobreza e a exclusão – e da liberdade.
Vemos estas crianças, os estivadores, os arrais, os descarregadores de carvão
no seu trabalho árduo e penoso, situação contrária à das personagens que
representam as classes privilegiadas, donas da riqueza. São eles os heróis
anónimos de um diálogo entre o humano e a Natureza, a denúncia da injustiça e a
busca de redenção, a solidariedade e a denúncia da pobreza e da penúria.
Acompanhamos
as personagens ao longo de quatro estações, vivendo as suas preocupações e
anseios, partilhando a sua fome e o seu fascínio pela Feira, assistindo aos
roubos dos pomares e às aflições das cheias, vendo filmes de cowboys e nadando
até à boca do esteiro, percebendo as enormes diferenças entre o mundo das
possibilidades e do bem-estar e o mundo das frustrações e das privações. É a
história de crianças que ainda não são homens, mas que também já não são
crianças: só o sofrimento é o mesmo.
Toda
a história é uma espécie de grito contra as injustiças de uma sociedade
desigual e aviltante, que condenava os pobres a um destino de escravidão e
indignidade. O trabalho infantil e juvenil, hoje felizmente ilegal e de modo
geral combatido pelos países desenvolvidos, é um dos temas fundamentais do
livro. Não por acaso, o autor dedica a sua obra aos “filhos dos homens que
nunca foram meninos”.
Na
epígrafe do romance, encontra-se uma alusão velada ao sistema capitalista:
“Esteiros. Minúsculos canais, como dedos de mão espalmada, abertos na margem do
Tejo. Dedos das mãos avaras dos telhais, que roubam nateiro às águas e vigores
à malta. Mãos de lama que só o rio afaga.” Os canais de água, percorridos
principalmente por crianças para extrair o barro necessário às olarias, são
personificados e assumem características humanas, pois possuem “mãos avaras”
que exaurem as forças e a vitalidade daqueles que são obrigados a trabalhar em
locais tão insalubres, que provocam a fraqueza e doenças e, em última
instância, provocam a velhice precoce e a morte das crianças obrigadas a
assumir tarefas e trabalhos que são próprios dos adultos.
O
romance, uma das referências mais emblemáticas do movimento neorrealista
português, foi de leitura obrigatória nas escolas secundárias portuguesas
durante duas décadas. É hoje um livro quase esquecido. No entanto, graças à sua
ingenuidade, bravura e simplicidade, Esteiros é um documento marcante da
história portuguesa do século XX – e deve ser relido para que não esqueçamos a
fotografia amarga desses anos.
“Esteiros resiste até mesmo a esta vontade de apagar da literatura o empenhamento político-social; é precisamente essa a frescura da escrita, essa autenticidade das personagens nas suas condutas e nas suas frases, essa poeticidade flagrante.” (Urbano Tavares Rodrigues)
“A sua miséria e o seu
abandono são de repente a sua liberdade e a liberdade pura alegria. [...]
Descalços, esfarrapados, famintos, com a mãe a morrer ou o pai desempregado,
submetidos por uns tostões à inominável violação de um trabalho animal, estas
crianças nunca pedem dó e nunca fazem dó.” (Vasco Pulido Valente)
“Poder-se-á também dizer
que um romance sobre crianças condenadas à miséria é singular no panorama
literário nacional, despertando emoções particulares. Depois, ou talvez
sobretudo, há a componente política. Por razões mais ideológicas do que
estéticas, o romance entrou para o cânone escolar, sendo de leitura obrigatória
na escola, depois do 25 de Abril, para só sair, talvez ainda por razões
ideológicas, passados alguns anos. Por isso, muita gente, mais ou menos jovem,
o leu ou, pelo menos, teve obrigação de o ler.” (Carlos Fiolhais)
Pedro
Mendes
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