“Quando lá atrás desfiz meu primeiro casamento, por motivos que não vêm
ao caso, minha mulher me chamou de machista e misógino. Falou sem reflectir,
por estar inconformada, pois conhecendo como ninguém a exata acepção e mesmo a
etimologia de cada palavra, ela sabe que não são corretas aquelas que proferiu.
Não sou de bater em mulher, nem me dá prazer algum magoar o coração delas.
Prefiro as que já vêm magoadas por outro homem; mulheres traídas, por exemplo,
mulheres com raiva, a cara quente. Mas nada se compara às esposas que enviúvam
ainda jovens e fiéis. Aquelas que se agarram ao caixão fechado, no velório do
marido morto em acidente pavoroso. Não posso ver uma foto desses velórios sem
pensar em quem será o primeiro a se deitar com a viúva, por quanto tempo ela
resistirá, com que confusão de sentimentos se entregará por fim. Mulheres que
choram no orgasmo também aprecio. Finjo: está triste?, doeu? Existe mesmo um
elo entre compaixão e perversidade.”
(excerto do livro “Essa gente”, de Chico Buarque)
O Chico Buarque foi um dos meus primeiros ídolos.
Era a época do rock, dos Beatles, dos Rolingstones , dos
Pink Floyd e de tantos outros. A par dessa onda frenética e esfusiante foi
crescendo no Brasil uma corrente musical que viria a chamar-se de MPB (Música
Popular Brasileira), a qual misturava samba, bossa nova e música ligeira. Todos
se recordam da Alcione, da Betânia, da Gal, do Caetano, do Vinicius, do
Giberto, do Jobim, para enumerar apenas alguns dos maiores, e ainda, os meus
preferidos, a Elis e o Chico. Destes dois últimos fiquei fã desde as primeiras
canções que ouvi. Amava as letras (poemas), a música, a orquestração a
interpretação, tudo… A Elis Regina, a rainha da interpretação, de uma
sensibilidade extrema, morreu cedo, muito nova. Continuámos por muito tempo a
ouvir as suas canções, cada vez mais antigas mas fomo-la esquecendo aos poucos,
recordando-a de vez em quando, com aquela nostalgia de outros tempos. O Chico
continuou até aos dias de hoje a surpreender-nos com a sua mestria, a sua,
posso dizer, genialidade, a escrever, a compor, a cantar. O álbum “A ópera do malandro”, já com uns
“aninhos”, continua a ser um dos meus discos de cabeceira.
O grande poeta, grande compositor, grande músico, hoje em
dia é escritor. Mais do que músico, assim me parece. E pasme-se, não é que o
homem escreve bem nas horas! Com a sua escrita continua a fazer-nos vibrar da
mesma forma que o fazia com as suas canções. Se nelas nunca falou de princesas
e castelos, os seus heróis sempre foram gente comum, gente das ruas, gente do
povo, lembremo-nos de “Geni e o Zepelim”
e “Construção”, agora nos seus livros
é exactamente o mesmo. As suas personagens não falam coisas bonitas, graciosas,
de mundos estranhos, inventados. Não, elas dizem e pensam exactamente aquilo
que nós dizemos e pensamos e vivem e movem-se nos sítios onde nós vivemos e
emocionam-se com as nossas mesmas emoções. Nós somos assim. É assim “Essa
Gente”.
Quinteiro
Comentários
A segunda questão que de imediato o texto me trás tem a ver com um preconceito antigo meu: à partida duvido sempre da qualidade literária de obra que tenha saído da pena de quem não tenha acedido à visibilidade pública, por outra via que não a das letras. Por exemplo, nunca li nada do José Rodrigues dos Santos. E nem o Nobel me convenceu a ler Bob Dylan. Nas livrarias, depois de folhear o Chico Buarque, também sempre o deixei na banca. Fica o compromisso: vou abrir uma exceção para o Chico.
nelson
Dado não ter lido o livro irei circunscrever, naturalmente, o meu comentário apenas ao texto proposto. Trata-se de um cenário típico da volatilidade que caracteriza o universo afetivo onde se inscreve o relacionamento de acasalamento, principalmente no meio urbano das sociedades atuais. Ainda que, como tudo, com muitas ramificações a atingirem já outros meios onde até há pouco predominava ainda a moral das sociedades antigas de tradição rural.
Penso que a pós-modernidade tem vindo a levantar, em muitos aspetos da vida, o tal “manto diáfano da fantasia” a que já o Eça se referia. Em termos menos poéticos, chamemos-lhe “manto da hipocrisia social”. E o mundo dos sentimentos não lhe escapa. Os sentimentos não estão à margem das dinâmicas sociais nem da história. E este grupo social – a família – que alguns estudiosos mais conservadores teimam ainda em designar por “célula base da sociedade” também tem os dias contados. Pelo menos na sua forma “atual”, muito embora os abanões que tem vindo a levar nas últimas décadas. Por exemplo, as famílias e os casamento homossexuais continuam a reproduzir ainda muito do essencial da família heterossexual tradicional, produzida pelas sociedades ocidentais ou por elas influenciadas. A exclusividade sexual mútua, a que se obrigam as duas partes, no contrato do casal, - homo ou hetero - para referir apenas este aspeto, é gerida por dinâmicas que não coincidem com os mecanismos que gerem os sentimentos. Apesar de tudo, com base na minha experiência, acho ser ainda este um modelo razoável para reformados 😊.
nelson
Numa passagem do texto em que a ex-mulher do narrador lhe escreve uma carta, a certo ponto ela diz: “Devo ademais te confessar que sinto falta de um amigo com quem compartilhar meu inconformismo em relação ao que estão fazendo com nosso país. Será que ainda teremos nossa correspondência violada? Será que ainda incendiarão nossos livros?”.
O autor põe na fala desta personagem as suas próprias preocupações com os tempos que se estão vivendo no seu país, com duas frases representativas de uma situação já muito extremada no que respeita à perseguição das pessoas pelo regime. Esperemos que não chegue a tal ponto, para bem essencialmente dos brasileiros, mas também o nosso, solidários que estamos com eles.
Quinteiro
Gostei muito do excerto e da interpretação Quinteiro. Uma das minhas citações preferidas que, volta e meia me ocorre, é: "Ariela descobriu que todo homem indo embora dá pena de se ver, assim como é triste qualquer bicho (...) com exceção do cavalo, que sempre vai vitorioso, mas só quem sabe ir embora igual a cavalo é mulher."