Cunha à Portuguesa
Anatomia da Cunha Portuguesa é um
estudo de João Ribeiro-Bidaoui, orientado pelos cânones da investigação
científica na área da sociologia. O autor escalpeliza, quase à exaustão, os
meandros da plasticidade dos comportamentos humanos que conduzem à popularmente
chamada “cunha”, designação que não enjeita e adota sem aspas: CUNHA.
Ao escrever atrás “… quase à exaustão
…” quero referir o que me parece uma lacuna na obra, tanto mais se
atentarmos numa das principais referências fundadoras da nossa cultura: o
“cristianismo”. Que obviamente escrevo entre aspas. Quem não recorda, desde os
seus tempos de criança, familiares a “meter cunhas” a Nossa Senhora e a uma venerável
lista de santos e santinhos, favores esses a liquidar em cache, velas ou terços
– os brincos ou o cordão de ouro eram também moeda corrente muito apreciada
pela Padroeira da Nação – logo que fosse confirmada a sua concessão?
Esta forma de cunha específica tinha a designação de promessa. A
natureza de contrato, ou negócio, encontra-se subjacente de forma bem explícita
nesta designação. Mas não é dessas cunhas, que a minha mãe – e outras mães –
metia a Nossa Senhora, para que intercedesse junto do meu pai no sentido de que
deixasse a última amante que tinha arranjado, que o autor se ocupa.
Período de eleições é tempo de contratar
– comprar, vender, trocar, prometer – favores políticos, votos e tralha
quejanda. Os boys estão com pressa e António Costa já perguntou a von der Leyen
se já podia ir ao banco. É este mercado que, no atual contexto da nossa vida
pública confere particular oportunidade ao livro de João Ribeiro-Bidaoui. Património
genuinamente português, adquirido e transmitido por herança através de
sucessivas gerações, a cunha constitui elemento estruturante do pântano onde
desde os seus primeiros alvores chafurda a nossa “democracia”. E para que a
coisa saia do domínio do abstrato para a realidade o autor ilustra o ensaio com
diversos casos-estudo.
Entre o soft “jeitinho” e a hard
corrupção, o leque de nuances é amplo: “uma mãozinha”, favor, favorecimento,
amiguismo, “untar as mãos”, “desenrrascanso”. A que correspondem também, no
domínio da perceção pública, dois extremos: fulano tal “é um merdas que sabe viver
apenas á custa de cunhas e favores”; ou “é um tipo importante, de sucesso, com boas
relações nos centros de poder”. O termo cunha, segundo Cutileiro, citado por Bidaoui,
terá origem no velho Portugal rural. País atrasado, sem indústria, a terra
constituía o principal objeto de trabalho. A cunha era uma forma simples de
fixar o cabo à enxada, bem como de remediar outros pequenos males na esconsa panóplia
de utensílios da casa do camponês. Daí que se encontrem indelevelmente
associadas ao mundo rural algumas formas de pagamento da cunha: o saco de
batatas, a garrafa de azeite (na região de Cantanhede ouvi usar o termo “azeiteiro”
para o funcionário público prestável a “favores”), a galinha ou o pagamento em
“serviços”. Tudo formas de ressarcir o “compadre” (daí o termo “compadrio”),
manga-de-alpaca bem colocado na repartição da vila, pelo favor prestado. Não
raro, recrutamento estratégico de conveniência, para padrinho de algum rebento
da prole (Eça desenha o boneco). Era(?) assim também o pequeno Portugal do
grande Salazar.
Ribeiro-Bidaoui convoca ainda para o seu
trabalho outros autores que se têm ocupado da matéria: “Como é que meia dúzia
de pessoas sem qualquer carreira, saber académico, experiência de vida, trato
do mundo, podem mandar nalguns casos mais do que um primeiro-ministro ou um
Presidente da República, ao deterem o controlo dos partidos ? A resposta é:
meteram muitas cunhas e prestaram muitos serviços numa fase da vida, e facilitaram
muitas cunhas noutra. Ӄ Pacheco Pereira, citado pelo autor, quem o diz.
As notícias saídas ao longo dos anos na
comunicação social não escapam também aos holofotes do autor. Por exemplo:
“Filho de João Soares contratado em janeiro pela Câmara de Lisboa (Cerejo J,
2016)”. Ou: “3000 casas atribuídas por cunha em Lisboa (Silva & Pedroso
Lima, 2008)”.
Estamos nos anos 40 do século passado. Refere
Joaquim Vieira na sua biografia de Mário Soares, a propósito das diligências da
família para a sua dispensa do serviço militar: “Fiquei isento. E tenho pena
porque achava muito importante que um militante político fizesse o serviço
militar. Mas o meu pai temia que eu fosse mandado para um batalhão disciplinar
como aconteceu a colegas meus. Arranjou as coisas para que ficasse livre. Como
o meu irmão, nessa época, era médico militar, não foi muito difícil. (2013,
p.37)”. “Arranjar as coisas” era mais uma forma de dizer “meter uma cunha”.
A cunha é transversal à nossa história.
Foi da monarquia, da ditadura e é da democracia. Qualquer estudo da nossa realidade
social que omita o estudo desta veneranda instituição nacional – a CUNHA – fica
irremediavelmente incompleto. A cunha é a face oculta da cidadania à portuguesa.
E, dado que estamos em ano de censos, propomos ao leitor o seguinte exercício: tente
apurar, por exemplo, no seu município, quantos funcionários de serviços
públicos conseguiram aí emprego ou ocupam lugares “por cunha”. Se tiver
dificuldade em aceder à informação, não hesite: meta uma cunha.
nelson anjos
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Cecília Pedro