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Mensagens

A mostrar mensagens de agosto, 2021
  Mare Nostrum (ou o pântano das autárquicas)        Mare Nostrum : era a designação dada pelos romanos ao que designamos hoje por Mediterrâneo – o grande lago que ocupa a posição central do que, no século II constituía o Império romano. Denominador comum de histórias e povos tão distintos como eram os que habitavam as margens norte e sul, do extremo ocidental até às terras a oriente, onde se escreviam Novo(s) Testamento(s). Ao longo de milénios ali tinham vindo a confluir, mercadejando, guerreando e pirateando nas suas águas.        A social-democracia – ou a democracia liberal, se se preferir conceito mais lato – representa hoje, no campo das grandes famílias políticas, o seu Mare Nostrum . No que respeita a Portugal, aí têm vindo a confluir também, alternando períodos de acalmia com pequenas desavenças domésticas, desde os fundadores PS e PSD, até aos mais recentes convertidos PCP e BE, para referir apenas os mais r...
  Reaccionário com dois cês – Rabugices sobre novos puritanos e outros agelastas Ricardo Araújo Pereira   Como feminista, considero o seguinte: a importância da entrada das mulheres na política reside no facto de as mulheres terem tanto direito a estar na política como os homens. Não é relevante se acrescentam, retiram ou deixam tudo na mesma. Têm o mesmo direito, e é tudo. Qual é a importância da entrada dos negros na política? A mesma. Têm esse direito. No entanto, creio que toda a gente teria achado absurdo que alguém perguntasse a Barack Obama se havia uma forma negra de encarar a política. Assim como não se pergunta a Donald Trump se há uma forma alaranjada de encarar a política. Trump, bem como qualquer outra pessoa cor de laranja, tem o direito de participar na vida política.   Não sei escrever sobre política, por isso terei muito pouco a dizer sobre este texto. Como entendo pouco do assunto, digo apenas que compreendo o ponto de vista do Ricardo ao dec...
  Galveias José Luís Peixoto   Por detrás da barba, por detrás das rugas, o rosto do velho Justino não era capaz de fingir indiferença. A medo, largando uma palavra de cada vez, a mulher contou-lhe que o irmão ofereceu o cordão à neta deles, à Ana Raquel, filha única da sua filha única. O velho Justino enfureceu-se e só foi capaz de dizer: Ela não precisa de nada vindo dele. A mulher tinha ido à vila na véspera da noite em que a terra esteve para rebentar, e mais valia que tivesse mesmo rebentado, toda estraçalhada em pedaços. Porque esperou tanto para lhe dizer? Naqueles dias, quando estavam calados, ela escondia essa conversa no juízo. Traíra-o com o silêncio, traíra-o com o barulho da chuva nas telhas. O irmão aproveitava a cachopa para lhe atirar o dinheiro à cara. Esse pensamento tinha garras. Arrancava-lhe o estômago da barriga a sangue-frio, virava-o do avesso, a escorrer ácido, e voltava a arrecadá-lo. Esse pensamento espetava-lhe uma dessas garras direita ...
  Carta para Josefa, minha avó               Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo — e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água. Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira — sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz.   Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrof...
    Cemitério de Pianos José Luís Peixoto     Não tenho dúvidas em afirmar que José Luís Peixoto é um dos escritores contemporâneos cuja escrita mais me fascina. Com nítidas influências de Lobo Antunes e, principalmente de Faulkner, adopta a técnica de múltiplos narradores que confere à escrita uma intemporalidade encantadora. O tempo sai claramente vencido. Avô, pai e filho, uma mesma vida; as mesmas angustias, que são as da gente simples, as de todos nós. "Éramos perpétuos uns nos outros", afirma o filho de Francisco.   A obra baseia-se na vida de um maratonista português que morreu, dramaticamente, ao quilómetro 29 da maratona dos Jogos Olímpicos de Estocolmo, em 1912. Carpinteiro de Profissão, Francisco Lázaro era filho e neto de carpinteiros. Nasceu no dia em que o pai morreu, como viria a suceder ao seu filho.   Memórias de vidas repetidas formam círculos concêntricos, fazendo-nos olhar a vida como um carrossel de facto...
    A Amiga Genial, de Elena Ferrante   Normalmente desconfia-se de escritores que atingem fama nos nossos dias pois os media criam e destroem, da noite para o dia, mitos e gente fantástica que nem sabemos de onde vêm e o porque da sua popularidade. Mesmo assim, como antes de recusar convém experimentar, foi com o espírito aberto que comprei o primeiro livro da tetralogia de Elena Ferrante. Não foi tão às cegas quanto isso pois alguém, cujo bom gosto pelas letras eu reconheço sem sombras de dúvida, mo aconselhou e aqui vou eu… Primeiro , a escritora: a Senhora Elena Ferrante foge da luz dos holofotes, desconhece-se a sua verdadeira identidade, só dá entrevistas (muito poucas) por e-mail e, para além de ter nascido em 1943, ter uma formação em Estudos Clássicos, ensinar (ou ter ensinado) tudo o mais que se diz sobre ela pertence ao mundo da especulação. Segundo , a obra: vou no segundo volume, mas tudo indica, que vou continuar. O primeiro, “A Amiga Genial”, narra uma hist...
  Metamorfose de uma palavra   (...)    A diferença essencial entre aquela cultura do passado e o entretenimento de hoje é que os produtos daquela pretendiam transcender o tempo presente, durar, continuar vivos nas gerações futuras, enquanto os produtos deste são fabricados para ser consumidos nesse instante e desaparecer, como os biscoitos ou as pipocas. Tolstói, Thomas Mann, tal como Joyce e Faulkner escreviam livros que pretendiam derrotar a morte, sobreviver aos seus autores, continuar a atrair e a fascinar leitores nos tempos futuros. As telenovelas brasileiras e os filmes de Bollywood. como os concertos de Shakira, não pretendem durar mais do que o tempo da sua apresentação e desaparecer para deixar espaço a outros produtos igualmente bem-sucedidos e efémeros. A cultura é diversão e o que não é diversão não é cultura. (...)     Para esta nova cultura são essenciais a produção industrial massiva e o êxito comercial. A distinção entre preço e valor ecli...